OPINIÃO -
Por Roberto Tardelli- Promotor de Justiça - MP/SP. É Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, ONG voltada ao atendimento de crianças e adolescente vítimas de maus tratos e abuso sexual.
"A PESQUISA -
Ficamos todos pasmos.
Entreolhamos e descremos no que víamos.
Somos assim? As mulheres se horrorizaram, os homens se horrorizaram, mas eram minoria. Que sociedade afinal acabamos por formatar, para usar um verbo mais contemporâneo?
Uma pesquisa, feita por órgão respeitado e de metodologia não contestada, trouxe uma conclusão aterradora, ao revelar que a maioria dos brasileiros, de ambos os sexos, justificam ataques sexuais a mulheres cujo 'comportamento' se desviam do 'recato' que lhes foi imposto historicamente e devo admitir que o resultado não poderia ser surpreendente....
Até há bem pouco tempo atrás, o estupro e os crimes sexuais em geral não eram crimes contra a pessoa ou sua dignidade sexual, mas eram o que se chamava de "crimes contra os costumes".
Por mais desalentador que nos seja, o crime de estupro não visava à proteção da mulher, mas à preservação dos "bons costumes", notadamente a "mulher honesta".
O crime era para proteger os bons costumes sociais; a mulher que eventualmente os desafiasse, fosse algo além e acima da "mulher honesta", qual seja, aquela católica devota, subserviente, doméstica, comportada e "mãe de família", estaria à margem dessa proteção.
A grosseria machista ia ao ponto de juristas sustentarem que a mulher casada não poderia ser vítima de estupro pelo marido, uma vez que era obrigada "ao débito conjugal".
O marido, que a obrigasse a manter relações sexuais, estaria agindo em pleno exercício regular de direito.
Um crime de redação estranhíssima, "corrupção de menores", exigia para sua configuração que houvesse prova efetiva da ingenuidade da adolescente, que fosse ela quase uma alienada mental.
Caso "soubesse das coisas do sexo", ela já estaria corrompida e, portanto, o fato seria atípico, à margem da proteção da lei. Desde cedo, obrigada a ser "honesta".
No crime de estupro, caso houvesse o que a lei chama de "violência presumida", que ocorria em situações em que a mulher estivesse sem condições de reagir ou fosse menor de catorze anos, a situação era degradante:
o agressor "vitimizava-se" e se apresentava como vítima de uma sedução feita pela menina, a quem imputava a responsabilidade do crime. Em outras palavras, que não era "honesta" e, assim, quem acabava julgada era, na verdade, a mulher; caso não fosse julgada honesta, o agressor estaria livre e ele, exposta a uma situação de exposição pública insuportavelmente vexatória.
Em um cenário todo predominantemente masculino, suas chances eram sempre pequenas...
O conceito de "mulher honesta" foi tão preponderante que atingia um ícone da sociedade cristã brasileira, a indissolubilidade do casamento, porque permitia sua anulação, caso o marido descobrisse que a esposa não fosse virgem.
A "desonra da filha na casa paterna" daria ensejo à sua deserdação. Por "desonra", leia-se vida sexual ativa.
A virgindade e a castidade constituíam-se deveres da mulher, que não tinha direito à disposição do próprio corpo.
O homem era o chefe do casal e havia na casa uma vontade dominante, que preponderava sobre todas as outras, inclusive e, claro, à da mulher.
O que busco dizer é que semeamos vento ao longo de muitas décadas.
A tempestade que hoje colhemos é o fruto amargo de nossa incapacidade de lidar com a igualdade de gênero....
Nossa cultura machista impregnou-se e teve suas "crias", sem que se desse conta de toda evolução social. O ódio "estimulado" nas redes sociais, tendo por base uma leitura fundamentalista do texto sagrado majoritário, dá a essa dimensão trágica uma legitimação religiosa que torna dogmáticas as questões que deveriam ser abertamente discutidas e que revela nossa medieval concepção feminina, negando direitos fundamentais, "justificando" agressões abomináveis, sempre em nome da preservação de valores, que somente justificam a perpetuação da violência...
---> As mulheres que se manifestaram na pesquisa e que compuseram sua triste maioria talvez não tenham se dado conta do processo de dominação que sofrem e que as faz justificarem o injustificável...
A pesquisa nada mais retrata o que somos e o que somos é o resultado de uma trajetória histórica de negações de direitos e mostra o que vemos todos os dias, nas ruas, nos ônibus, metrô, trens, escritórios, bares, estádios, restaurantes, onde quer que estejamos.
A mulher sozinha é sempre um alvo.
A mulher acompanhada é uma disputa.
A mulher com outra mulher é lésbica e, por isso, indigna de respeito; a mulher, enfim, dificilmente tem o direito de ser apenas ela, de usar o mesmo espaço público dos homens.
O grande mérito foi a revelação do óbvio oculto.
Foi destacar que temos muito a caminhar no sentido de uma sociedade justa, fraterna, igualitária, sem preconceitos, fundada na paz e na harmonia.
Onde está isso?! Na Constituição Federal....
---> Mas, deveria estar na mente e nos corações de cada um de nós....."